Sobre ser tempestade
Nossas decisões impactam o outro. Não importa quem esse outro seja.
Eu gosto de mudar. Gosto de mudança e toda o movimento que isso gera. Gosto do processo do início ao fim. Desde procurar um lugar, achar, encaixotar, levar, desencaixotar e por fim, se apropriar daquele espaço, transformando ele em uma casa. Gosto também de mudar de cabelo, de mudar de estilo, de mudar de planos. E acho que uma coisa está ligada a outra.
Durante minha infância, mudei mais de 10 vezes e naquelas dinâmicas de grupo em que a pessoa tem que voltar em pensamento para a casa onde cresceu, eu não sei que registro é esse porque tive várias e todas têm algo marcante pra mim: um cheiro, uma árvore, uma sala, uma cozinha…E que fique claro: isso está longe de ser uma questão na análise, ou seja, não é um trauma. Eu sempre encarei tudo isso com muita tranquilidade, leveza e bom humor. Na minha família, isso era o normal.
Já maior, entendi que a gente se mudava tanto porque minha mãe não tinha casa própria e ela estava na lida, fazendo a vida acontecer da forma como podia. Como boa filha mais velha, eu assimilei aquilo com uma certa admiração e na vida adulta me vi traçando uma rota bem parecida.
O aluguel ficava caro? Muda.
Casou mais uma vez? Muda.
Separou? Muda.
Tá sem grana? Casa da mãe.
Quer tentar a vida no campo? Vamos morar no sítio.
E assim a gente percorreu vários bairros da cidade do Recife.
Quando minha mãe finalmente realizou o sonho da casa própria e assentou, eu já era grande e logo na sequência, casei e comecei a minha jornada pessoal de mudanças.
Numa entrevista de emprego, poderia responder sem qualquer mentira, que sou uma pessoa resiliente e que me adapto bem as mudanças. Praticamente um clichê de RH da vida real.
Mas claro que nem tudo é só bom e entre as coisas ruins de ser uma pessoa que mudou demais de casa, adquiri um vício em sites de aluguéis e vendas de imóveis, que em muitos momentos se tornou incontrolável e me atrapalhou, porque tal qual uma rede social, eu me perdia nas páginas de anúncios que me ofertavam lugares proibitivos ou horrorosos e por lá eu ficava horas do meu dia.
Quando a casa nova é realmente boa, eu posso ficar até um ano sem entrar nesses sites - o que mostra meu autocontrole. Mas depois desse tempo, eu tenho recaídas e fico me colocando limites distantes para o dia em que tudo isso terá um fim. No meu caso, é a compra da minha própria residência. Quando esse dia chegar, aí sim, eu vou parar de ver casas, lotes e apartamentos que eu nunca irei morar. Até lá, eu sigo no meu deleite e loucura pensando que tem gente que paga aluguel de 20 mil reais (em Brasília eu já vi até de 60 mil!).
Tá, tudo bem. Essa não é uma grande sombra ou algo de fato ruim que eu aprendi com tantas mudanças vividas. Acho que entre esse vício e ser resiliente, resiliente ganha com facilidade. Se eu for mais fundo nesse questão talvez me depare com algo mais problemático, mas a real é que não percebo as perdas ou as dores de ter mudado tanto de casa, porque a presença da minha mãe mantinha a estabilidade no lugar preciso. É verdade que nunca finquei raízes em empregos, por exemplo, mas será que isso é ruim? Não sei.
O que sei é que ainda que as coisas mudassem, isso não nos abalava. E ainda que minha família nuclear tenha sofrido mudanças estruturais - casamentos e separações - ao longo da minha infância e adolescência, o amor que eu sentia da minha mãe era indissolúvel e isso se tornou um super poder na minha vida. Me fez ter muita tranquilidade para lidar com mudanças e até achar que elas são uma parte absolutamente natural da vida. Acho estranho certos apegos, porque precisei me desfazer de coisas, pessoas e lugares muitas vezes.
Pensar sobre tudo isso me leva à confirmação de quanto a família e os adultos cuidadores são o pano de fundo onde a vida dos filhos se desenrola. O cenário que estabelece como as histórias serão sentidas e depois contadas. E isso pode ser uma responsabilidade pesada demais de carregar ou pode ser encarado de peito aberto, tipo missão a ser cumprida, sabe? De alguma forma eu sempre percebi a maternidade da segunda maneira e, mesmo diante do caos, eu encontrava um jeito de fincar o pé no chão e atravessar com os meus filhos, como uma certa tranquilidade a respeito dos movimentos da vida, ainda que estivesse tudo estranho, fora do lugar.
A maneira como minha mãe encarava as mudanças, turbulências, os problemas, deixou um legado importante para mim e isso se tornou a minha busca enquanto mãe: ser porto seguro e não a tempestade.
Bonito na teoria e difícil na prática, porque nem sempre a gente consegue. Em algumas situações são as nossas decisões que provocam os mares, que fecham o tempo e que escondem o sol. Em alguns casos essas decisões precisam ser tomadas e em outras, nós adultos queremos tomá-las.
Fui a tempestade para meus filhos recentemente, diante de mais uma mudança de escola.
// Para continuar lendo, faça sua assinatura//